O suicídio não é uma novidade e está presente em relatos em toda a História humana. Poderíamos começar nossa história em 2500 a.C, na cidade de Ur, na antiga Suméria, onde doze pessoas beberam uma poção envenenada e se deitaram para esperar a morte. Ou ainda no casal Píramo e Tisbe, que, não podendo usufruir do amor que os envolvia pela briga de seus familiares, decidiram colocar fim à própria vida para se pouparem de sofrimento. Mito este que inspirou William Shakespeare a escrever a famosa tragédia de Romeu e Julieta. Não estaria equivocado lembrar de Ajax, Jocasta e Sansão.
Mas não. Nossa história começará no final do século XX, envolverá um Mustang amarelo, um jovem talentoso de futuro promissor e um amor não correspondido.
Em 1994, ano que o Brasil se tornou tetracampeão mundial de futebol, nas montanhas do Colorado norte americano, vivia Mike Emme, de 17 anos, garoto famoso por ser um aluno especial e uma pessoa caridosa, gentil e inteligente. Era conhecido por sua habilidade de lidar com a engenharia dos carros em geral. Certa vez, Mike adquiriu um Mustang abandonado e visando superar-se em desafio, reconstruí-o e o pintou de amarelo. O carro passou a ser chamado de Mustang Mike. Fatos como esses só enchiam a família Emme de orgulho e o garoto mantinha excelentes relações com todos ao seu redor.
Até que no verão, uma garota com que estava envolvido, noivou-se de outro rapaz, trazendo nosso personagem ao desespero. Então, entendendo que teria que “ter aprendido a odiar”, Mike entrou no carro amarelo, ajustou o banco, fechou a porta e com uma arma de fogo, tirou sua vida. A família chegou sete minutos depois. E constatou a tragédia inesperada que uma simples aceleração maior do veículo que os conduzia para casa poderia ter evitado.
Mike veio compor uma estatística mundial e alarmante e padeceu daquela que é a segunda maior causa de mortes de jovens no mundo. O suicídio é um problema de saúde pública. Segundo a OMS, mais de um milhão de pessoas se matam ao redor do mundo e espera-se que até 2020 esse número chegue a 1,5 milhões. Os números apontam que no mundo uma pessoa se suicida a cada 40 segundos. E ele está entre as 10 principais causas de morte na maioria dos países.
O suicídio é o ato voluntário e individual de tirar a própria vida seguindo uma lógica complexa que envolve três desejos intimamente relacionados: o desejo de matar, seguindo assim um impulso assassino, o de ser morto, ocupando assim a posição de vítima e o desejo de morrer, colocando assim um fim ao próprio sofrimento.
É um fenômeno psicológico complexo em que o indivíduo divide a si mesmo em dois: em uma parte altamente autocrítica e hostil consigo mesmo, que encontra diversas razões para sentenciar a si mesmo à morte e uma parte passiva e indefesa que aceita o destino estabelecido pela outra parte sem encontrar argumentos que advogasse em sua defesa. Mais, regozija-se de uma futura paz que estaria a alcançar com o ato.
Os fios da trama que tiraram a vida de Mike e de tantas outras pessoas no mundo talvez tenham começados a ser entrelaçados bem antes de seu nascimento. Provavelmente começou quando seus pais se conheceram e compuseram uma configuração genética que favoreceria a presença de genes que a ciência aponta como ligadas ao comportamento suicida.
Por exemplo, se lembrarmos que o ser humano é elaborado a partir da configuração de 23 pares de cromossomos, os estudos têm demonstrado que no 17º par há um gene que parece estar relacionado à agressividade, impulsividade e ao comportamento suicida. Também temos que destacar genes ligados a alterações moleculares que podem patrocinar o desenvolvimento de depressão ou outras doenças mentais como esquizofrenia. Estudos apontam que a quase totalidade do suicídio, 98% dos casos, estão ligados à uma doença mental e essas doenças como depressão, transtorno bipolar ou esquizofrenia são condicionadas geneticamente.
Uma vez nascido com a pré-disposição hereditária ao suicídio, a infância torna-se um período crítico para o desenvolvimento das bases do comportamento hostil, impulsivo e da autoagressividade. É na primeira infância que se criam as estruturas para a instalação do que depois será conhecido como autoestima. Pode parecer superficial ter a habilidade de se auto elogiar, mas uma sólida autoestima é nossa primeira defesa a frustrações e à crítica excessiva dirigida a nós mesmos. É também na infância que se desenvolve nossa capacidade de estabelecer relações sociais e vincular-se a pessoas.
Se a autoestima é nossa primeira defesa à decepção, o relacionamento com pessoas torna-se a segunda. Não é à toa que pessoas com intensos suportes sociais como casados, com filhos, frequentadores de igreja e empregados estão mais protegidos do comportamento suicida. Além disso tudo fica mais fácil se, diante de uma doença mental como depressão, o indivíduo tiver a quem pedir ajuda.
Imagine uma situação peculiar em que um homem, de meia idade, é demitido. A primeira reação de seu mundo interno, em núcleos psicológicos relacionados a autocrítica, é de se colocar para baixo, atestar a própria incompetência, suas responsabilidades e prever um nebuloso futuro. Então é recrutada sua primeira defesa, ligada à autoestima. Em um indivíduo saudável, rapidamente a autocrítica perde espaço e ele diz a si próprio conceitos de conforto como é normal ser demitido e que ele sempre que se deparou com dificuldades e soube sair delas bem.
A auto estima traz um conforto interno que leva o indivíduo a virar a página e planejar o futuro. Agora imagine que ele não tenha uma autoestima bem desenvolvida. A hipertrofia da autocrítica poderá clamar por uma autoagressividade e a pessoa deixa de poder contar consigo mesma. Então, entra em ação a segunda linha de defesa, está agora situada no mundo externo. A família, os amigos executarão um papel que o mundo interno se furtou a desempenhar e lembrarão à pessoa suas qualidades, suas aptidões, habilidades e competência e destacarão como ele não está sozinho.
Esse papel também pode ser exercido por outros setores da comunidade como escola e igreja. Esta lhe lembrará as vantagens da fé e de como a sensação de solidão pode ser considerada irreal se ele acreditar que Deus está com ele. Dessa forma, a frustração e autocrítica são tamponadas e o indivíduo encontra condições para seguir em frente. Vamos neste instante imaginar a inexistência desse suporte social. Segue-se a demasiada autocrítica que, em indivíduos geneticamente predispostos, podem desencadear uma depressão. O mundo interno psicológico controverso, marcado por excesso de autocrítica e baixa autoestima, associado a um corpo mentalmente doente e influenciado por uma ausência de suporte social, tendem a criar um clima de desamparo e desesperança que levariam à ideia de que a vida não tem sentido.
Essa lógica de eventos nem sempre é tão equilibrada e o suicídio pode ocorrer em indivíduos que tem um bom suporte social. Nesse caso, o comportamento impulsivo e uma doença mental altamente atuante são os imperativos.
Certa vez fui surpreendido por um telefonema de Joana (nome fictício), uma paciente minha, que estupefata contava-me que o filho de 15 anos tinha se jogado do 15 andar de seu prédio. Joana passara os últimos dois anos tentando procurar um psiquiatra que tratasse o comportamento excessivamente impulsivo e agressivo do jovem. Na noite anterior, a família foi feliz ao cinema e não se teve nenhuma dica de qualquer ideia que sugerisse um sofrimento. E foi uma despedida. Não deixou cartas nem rastros. Os indícios sugerem que a decisão de morrer ocorreu minutos antes do ato derradeiro.
Maria (nome fictício), outra paciente minha, conta-nos sua experiência peculiar. Aparentemente estabilizada de seu transtorno depressivo recorrente, certa vez acordou tranquila, foi à cozinha e lavando a louça, foi tomada por uma súbita sensação de que nada valia a pena e que a vida não fazia sentido. Tentou tirar a própria vida e, para nosso prazer, não teve sucesso.
As experiências de Joana e Maria trazem luz a outra peculiaridade do suicídio. Ele é um fenômeno majoritariamente masculino. Por traços de hostilidade, agressividade e impulsividade ser geneticamente mais presentes no gênero masculino, podemos entender o porquê homens se matam mais: eles usufruem de métodos mais ofensivos do que as mulheres como enforcamento, precipitar-se de alturas ou armas de fogo.
Mas isso não demostra que as mulheres se angustiam menos. Os números indicam que se o ato consumado é mais frequente em homens, as tentativas de suicídio são mais prevalentes das mulheres, que tendem a usar métodos reversíveis como uso de medicamentos para tirar a própria vida.
No velório de Mike Emme, sua família entregou fitas amarelas aos amigos com a sugestão “se precisar de ajuda, peça”. E o setembro amarelo veio lembrar isso à sociedade. Vivemos em uma sociedade absolutamente cobradora e exigente, mas muito caridosa. O Centro de Valorização da Vida, ONG devotada a ajudar aos angustiados que se sentem sozinho, é um exemplo disso. Temos que estar atentos. Pessoas ao nosso redor podem estar se sentindo sozinhas e precisando de ajuda. Que tal ajudar?
Caso veja pessoas que mudaram subitamente o jeito de ser, que se encontram mais retraídas, que estão se isolando. Se você tiver acesso a pessoas que passaram por situações frustrantes como demissão ou término de relacionamentos ou que podem ser consideradas humilhantes como o bullying.
Caso presencie de comportamentos excêntricos de algumas pessoas como distribuir pertences ou devolver artigos emprestados antes do prazo combinado. Se você enxergar pessoas doentes, chorosas deprimidas, ou ainda deprimidas que melhoraram subitamente. Se essas pessoas estiverem próximas de você, estenda a mão e pergunte ativamente se ela pensa em se matar. Não caia no mito de que quem quer se matar não fala. Quem quer cometer o suicídio fala sim e de você se mostrar disponível, ele pedirá ajuda.
Diminuir as tristes taxas de suicídio é uma obrigação de todos os que trabalham com saúde mental. Mas, antes de tudo, prevenir essa morte absolutamente evitável é um ato humano.
Dr. Rodrigo de Almeida Ramos – Médico Psiquiatra | Diretor da Clínica Vínculo
CRM-SP: 105.548