Área do Paciente
Online Chat
Artigos

O Enigma do Sono

29 de agosto de 2017

Poucos recursos fisiológicos são tão recompensadores como o sono. Podemos dizer com segurança que um boa noite de sono pode ajudar, e muito, na qualidade do nosso dia e das nossas memórias. O sono é fundamental para o pleno funcionamento de nosso cérebro, para a regulação dos afetos, para funções como atenção e concentração e ainda para a diminuição da carga emocional das nossas lembranças.

O mundo mágico do adormecimento sempre foi objeto de fascínio das nossas culturas. A mitologia grega, por exemplo, descreve Hipnos, deus do sono, filho de Nix, deusa da noite e Érebo, as trevas primordiais. Hipnos morava em um castelo grandioso situado em uma caverna onde o Sol nunca chegava, vivendo assim sempre com tranquilidade, paz e silêncio. Ele ficava ainda protegido por seu irmão Morfeu, deus dos sonhos, que sempre tomava o cuidado para que ninguém o acordasse.

O sono ainda é protagonista de contos contemporâneos, como o da Bela Adormecida, contos dos irmãos Grimm, no qual uma princesa experimentou a ira de uma fada madrinha que não teria sido convidada para as bodas de seu nascimento. Como castigo aos pais da menina pela negligência, esta foi condenada a morrer aos 15 anos. O que foi abrandado por outra fada, que trocou a pena de morte pela dádiva dos cem anos de sono.

Vale destacar ainda, o conto de Rip Van Winkle, publicado em 1819 por Washinton Irving. Nele, o jovem fazendeiro com esse nome fugindo de uma briga com a esposa, vai para as montanhas e lá é levado por um anão a dormir por 20 anos.

Mistério do sono

O fato é que o mistério do sono ainda é pouco compreendido e até hoje a ciência não é capaz de dizer com toda clareza por que dormimos. Todos os mamíferos, aves e répteis parecem dormir, embora alguns tenham muitos motivos para se manter acordados a todo momento.

Não dormir pode significar sobreviver. Veja o caso dos golfinhos nariz-de-garrafa (Tursiops trucantus), animais que dormem um hemisfério cerebral de cada vez, e o adormecer ocorre da seguinte forma: primeiro se repousa um lado do encéfalo por cerca de 2 horas, segue-se uma hora de despertar para ambos os lados e depois temos duas horas de sono do outro hemisfério. E dessa forma transcorre-se por 12 horas. Temos ainda os golfinhos cegos do rio Indus, no Paquistão, que dormem cerca de 4 a 6 segundos para evitar o choque em rochas ou entulhos nas águas barrentas onde vive.

Como nós dormimos

Mas os mamíferos em geral, e os seres humanos em particular, regulam seu sono segundo o que chamamos de ritmo circadiano, ciclos de claro e escuro que acompanham a rotação da terra segundo agentes indicadores do tempo, os chamados zeitgebers. Os principais zeitgebers conhecidos são o nascer e o pôr do sol.

Uma região cerebral específica, o chamado núcleo supraquiasmático registra as atividades da luz solar e modula o nosso funcionamento cerebral. É a partir desta sincronia do nosso corpo com atividade de nosso planeta, que o corpo planeja nosso sono. E vivemos intimamente associados a ele. Podemos dizer que passamos 1/3 da nossa vida dormindo. Isso significa que um adulto que alcançou os 75 anos, reservou 25 anos de sua vida para dormir.

O sono afeta todas as atividades físicas e mentais como a regulação de hormônios, a frequência respiratória e os processos de pensamento. E o processo de dormir envolve quatro estágios principais que sucedem um ao outro como a troca de marcha de um carro. Exatamente como quando dirigimos um veículo, quando dormimos, avançamos por fases do sono que progressivamente se aprofunda até se chegar a uma situação paradoxal, chamado sono REM (de movimentação rápida dos olhos – rapid eye moviment, em inglês), aquele momento dos sonhos vívidos.

Os estágios do sono

O nosso primeiro passo rumo a um boa noite de sono é o Estágio 1, a fase superficial. Aqui, o cérebro se comporta quase da mesma forma que na vigília. Inicia-se um relaxamento muscular, mas ainda não tão proeminente. Em geral ficamos cerca de 2% a 5% nessa fase.

Então passamos para o Estágio 2, o momento daquele sono leve. A musculatura está relaxando cada vez mais e os olhos estão paralisados, sem movimentação digna de nota. Essa é a fase em que ficamos mais tempo durante todo o percurso do sono, cerca de 45 a 55% do período.

Passado esse ato, entramos no sono profundo, o Estágio 3 em que temos um bom relaxamento muscular, embora a musculatura ainda esteja ativa e uma haja inatividade da musculatura ocular. A título de curiosidade é em geral nessa fase do sono em que se tem ataques de sonambulismo. Um ataque de sonambulismo pode apresentar olhos abertos, movimentação pelo quarto, pela casa ou até por fora de casa, mas com percepção suficiente para fugir de situações perigosas como subir as escadas.

A cognição e os julgamentos estão prejudicados. E é geralmente difícil acordar os sonâmbulos. Justamente porque eles estão em sono profundo. O mais adequado é conduzi-los novamente à cama com cuidado. Em geral, dedicamos 15 a 25% do nosso tempo de sono a essa fase.

Então voltamos para o estágio 3, regredimos para o estágio 2 até chegar ao estágio 1 e por fim entramos no sono REM.

O sono REM

O sono REM é chamado de paradoxal porque ele exibe uma atividade cerebral semelhante ao estágio 1 e à vigília. O indivíduo apresenta movimentações nas musculaturas oculares, visíveis para quem assiste a pessoa dormir, e uma paralisia integral da musculatura.

As pesquisas apontam que o sono REM é fundamental para o processo de aprendizagem e integração e consolidação das memórias. Quando tentamos impedir uma pessoa de se chegar ao sono REM, acordando-a todas as vezes em que a vemos chegar nessa fase, assistimos a uma tentativa desesperada de fazer o cérebro chegar rapidamente à essa fase. E quando a deixarmos dormir tranquila, veremos o cérebro passar a quantidade de tempo suficiente em sono REM para recuperar o estrago. Isso demonstra quão importante para a nossa saúde é esse estágio do sono. Esse período, em geral, ocupa 20 a 25% do tempo total de sono.

Os sonhos

O que muda, de acordo como o estágio do sono, é o tipo de sonho. Os que ocorrem na fase REM são longos, principalmente visuais, um pouco emocionais e, em geral, não está relacionado aos acontecimentos imediatos do cotidiano. São os objetos de trabalho de psicanalistas e estão relacionados ao que Freud chamou de conteúdo latente, ou material inconsciente aflorando para o indivíduo.

Os sonhos não REM são mais curtos, menos visuais, menos emocionais e mais conceituais, em geral relacionado ao cotidiano do sonhador. É o que Freud chamou de conteúdo manifesto do sonho, ou resíduos do dia a dia.

Embora não saibamos exatamente todos os segredos do sono, uma verdade tem parecido cada vez mais absoluta: sono é um dos elementos fundamentais para a boa saúde e da adequada performance comportamental no cotidiano.

Como disse Henry Piéron em 1913: o sono é necessário periodicamente, tem um ritmo relativamente independente das condições externas e caracterizam-se pela interrupção da nossa capacidade de percepção do meio pela inativação das relações entre nosso sistema nervoso e o meio ambiente. Não é de se imaginar, portanto, os malefícios que trariam doenças próprias do sono como a insônia.

Garantir um boa noite de sono é um dos deveres das pessoas com sua própria saúde. Como diria Hamlet, de William Shakespeare “dormir, nada mais; e dizer que pelo sono se findam as dores, como mil abalos inerentes à carne (…) Morrer – dormir; dormir, talvez sonhar – eis o problema: pois os sonhos que vierem nesse sono de morte, uma vez livres desse invólucro mortal, fazem cismar. Esse é o motivo que prolonga a desdita desta vida”.